Em dezembro e janeiro últimos, nos edificamos com dois grandes
Santos: São Francisco de Sales e Santa Joana de Chantal. Animados por um
só ideal, fundaram a Congregação da Visitação. Tal obra
desempenhou papel saliente na história da Contra-Reforma católica
na França do século XVII. Junto a eles atuou, por vezes, São Vicente de
Paulo, cooperando naquela magnífica realização. Depois, São Vicente de
Paulo levou avante outra obra ainda maior, com repercussão mais
universal do que a do Bispo de Genebra e da Baronesa de Chantal.
Santa Luísa de Marillac foi dirigida espiritual e grande cooperadora
de São Vicente. Desempenhou, em relação a ele, papel análogo ao de Santa
Joana de Chantal junto a São Francisco de Sales. Neste mês comemoramos a
festa litúrgica dessa grande santa.
Decadência religiosa e miséria material
No século XVII já ia adiantada
a decadência da Idade Média – época que tão admiráveis frutos
produziu outrora para a Cristandade. As guerras de religião na França
haviam tornado o país continuamente devastado, o campo sem cultivo, as
fortunas arruinadas, um sem-número de famintos e miseráveis
refugiavam-se em Paris, aumentando de modo assustador a população da
capital.
"Os mendigos formavam exércitos que se apresentavam em grupos
compactos, arma ao braço e blasfêmia nos lábios, diante das igrejas,
exigindo imperiosamente a esmola" (1).
O que podia fazer o Poder Público ante tão grande mal? Muito pouca e
durável coisa.
Foi quando a Providência suscitou esse homem de estatura
verdadeiramente profética, São Vicente de Paulo, que -- secundado por
almas exponenciais e de grande santidade, como Santa Luísa de Marillac
-- com suas obras de assistência e misericórdia começou a modificar o
lúgubre panorama.
O encontro de dois santos
A infância e a adolescência de Luísa de Marillac foram uma sucessão
de sofrimentos morais e espirituais. Órfã de pai e mãe, foi educada pelo
tio, Chanceler do Reino de França. Homem de grande piedade, fê-la
progredir nas letras, artes e virtude. Entretanto, de consciência
sumamente delicada, Luísa sofria da terrível doença espiritual dos
escrúpulos.
Aos 22 anos, sentiu o apelo para a vida religiosa, mas cedeu ao
desejo do tio e ao conselho do confessor, casando-se com Antonio Le
Gras, oficial a serviço da Rainha. Antonio, porém, trazia consigo os
sintomas da doença que o levaria ao túmulo 12 anos depois.
Viúva aos 34 anos, rica e piedosa, Luísa dedicou-se inteiramente aos
pobres. Faltava-lhe porém um diretor que a livrasse dos malditos
escrúpulos, permitindo-lhe enfim voar para os altos horizontes a que se
sentia chamada. São Francisco de Sales tentou essa tarefa, mas os
escrúpulos prosseguiram.
Dois anos após a morte do Prelado, Santa Luísa conheceu São Vicente
de Paulo. No primeiro encontro, a impressão mútua dos dois santos foi
negativa. A bela e elevada educação aristocrática de Luísa de Marillac
levava-a a ver no Pe. Vicente um camponês um tanto rústico e tristonho.
O sacerdote, por sua vez, não se interessou por aquela grande dama.
Ocupado, como vivia, com os pobres, não tinha em vista dirigir
espiritualmente pessoas da alta sociedade. Essa primeira impressão
mútua, contrastante, desvaneceu-se aos poucos quando um foi descobrindo
na alma do outro os enormes tesouros que a graça ali depositara.
Formou-se então aquela sociedade espiritual, que frutificaria depois
em tantos benefícios para a Igreja e a sociedade. E, onde São Francisco
de Sales nada conseguira, São Vicente de Paulo triunfou, curando a jovem
viúva de seus escrúpulos e tornando-a sua maior colaboradora nas obras
de misericórdia que empreendia, conduzindo-a ademais aos páramos da
santidade.
Santa Luísa, por sua vez, colocou-se inteiramente em suas mãos,
fundando com ele as Confrarias da Caridade, a Congregação das Irmãs da
Caridade (de São Vicente de Paulo), tornando-se sua grande auxiliar até
falecer em 15 de março de 1660, seis meses antes de seu diretor.
A pressa da dirigida, a lentidão do diretor
São Vicente de Paulo, visitando as Confrarias da Caridade do
interior, ia recrutando as jovens mais virtuosas e aptas para as
destinar às Confrarias de Paris. Recebiam elas algumas rápidas lições
sobre curativos, modo de tratar os enfermos, e faziam os exercícios
espirituais sob a direção de Santa Luísa, antes de iniciar seu trabalho
na capital. A santa ia depois visitar e incentivar a cada uma delas em
seu trabalho caritativo nas diversas paróquias.
Crescendo o número de jovens, São Vicente pensou em prepará-las para
uma espécie de noviciado na senhorial casa de Luísa de Marillac. Esta
via assim concretizar-se um sonho que tivera muitos anos antes, quando
Deus lhe mostrara muitas jovens que, dirigidas por ela, entregavam-se ao
atendimento dos pobres. Por isso, queria apressar as coisas, formando
logo uma sociedade religiosa.
Como diz um dos biógrafos de São Vicente de Paulo, "as pressas de
Santa Luísa não entravam na psicologia do Santo. Entre ambos
entabulou-se por essa época a batalha epistolar da lentidão contra a
pressa". São Vicente tentava refreá-la, mas sem esfriar o bom impulso
que a propulsionava para a frente: "Deixe Deus obrar, e fie-se nEle... e
verá cumprir-se os desejos de seu coração" (2).
O anjo da dirigida apressa o do diretor
Pressionado por Santa Luísa, São Vicente escreveu-lhe dizendo que,
com freqüencia, o "bom anjo" dela havia falado com o seu, sugerindo-lhe
a obra a ser fundada. Por isso, falariam sobre ela o mais rápido
possível.
A pressa de Santa Luísa acelerou os planos de São Vicente. E,
finalmente, encontraram uma fórmula: suas filhas não seriam religiosas.
Ao compor, com Santa Luísa, as regras das Filhas da Caridade, São
Vicente tirou delas todas as palavras que pudessem dar idéia de vida
religiosa. Não teriam clausura, convento, nem aparência religiosa.
Vestir-se-iam como as camponesas que aguardavam a fundação do Instituto
e serviam nas Caridades.
Assim, no dia 29 de novembro de 1633, fundou-se o Instituto das
Filhas da Caridade, cujo espírito deveria ser de "simplicidade,
caridade, humildade, mortificação, amor ao trabalho... obediência,
pobreza e castidade" (3).
Como os votos são algo da
essência da vida religiosa – embora não bastem os votos para
caracterizá-la -- São Vicente não tinha a intenção que suas filhas
os fizessem. Convenceu-se, porém, ao ler, em 1640, uma fórmula dos
votos pronunciados por uma Ordem hospitalária italiana concebidos
nestes termos: "Faço voto e prometo a Deus guardar toda minha vida
a pobreza, a castidade e a obediência, e servir a nossos senhores, os
pobres". Levou-os adiante, mas aos poucos. Só dois anos depois
permitiu a Santa Luísa de Marillac e a outras quatro Irmãs, que os
pronunciassem. Depois foi sendo permitido às que tivessem mais de cinco
anos na companhia, que também os fizessem.
Prudente sagacidade feminina vence a humildade do Santo
Houve uma santa polêmica entre os dois fundadores sobre a quem
deveriam ficar sujeitas as Irmãs. O Santo queria pô-las não sob sua
direção, mas submetê-las aos Prelados locais. Santa Luísa discordava e
com razão. E seus argumentos tinham peso: alegava os inconvenientes que
adviriam à instituição se os Bispos onde se estabelecessem pusessem
obstáculos, e a perda da unidade de espírito que isso acarretaria.
Desta vez, Luísa de Marillac,
com astúcia cheia de bom espírito, fez intervir no assunto a rainha,
Ana d’Áustria, obtendo que ela escrevesse a Roma para pedir ao
Papa que nomeasse São Vicente de Paulo e seus sucessores como
superiores do Instituto. Assim, desta vez, a prudente sagacidade de
Santa Luísa levou a melhor sobre a humildade de São Vicente de
Paulo...
Afastada a tentação de vanglória
A fama dessa grande dama, apóstola da caridade, difundiu-se por vilas
e cidades, tornando-se sua entrada e saída em muitas delas um verdadeiro
triunfo. Em Beauvais, por exemplo, não podia ter sido maior: "Mesmo os
homens, desejosos de escutá-la, entravam furtivamente na casa onde
falava às senhoras, esgueiravam-se até perto da sala da conferência,
colavam os ouvidos nas paredes de tabique, e se retiravam maravilhados
de tanta prudência e sabedoria. O povo de Beauvais despediu-se dela
perseguindo-a com vivas e aplausos até os arredores da cidade. A
multidão, rodeando sua carruagem, estorvava sua marcha".
Um milagre veio confirmar na fé essa gente simples daquela época em
que grandeza de alma e virtude ainda encantavam. Com a multidão
rodeando a carruagem, de repente uma menina caiu sob suas rodas em
movimento. A um grito de terror dos presentes, Santa Luísa ergueu os
olhos ao céu numa prece. Passada a carruagem, a meninazinha levantou-se
por si própria, sem um arranhão.
Esses triunfos, se de um lado alegravam o vigilante São Vicente, de
outro deixavam-no preocupado em manter a humildade de sua dirigida, pois
não há maior veneno para as obras de Deus do que a vanglória. A isso, só
a alma solidamente firmada na virtude pode resistir. Nessas ocasiões,
ele aconselhava Luísa de Marillac: "Una vosso espírito às burlas,
desprezos e maus tratos sofridos pelo Filho de Deus... Na verdade,
senhora, uma alma verdadeiramente humilde se humilha tanto nas honras
quanto nos desprezos, e obra como a abelha, que fabrica seu mel tanto do
orvalho que cai sobre o absinto quanto do que cai sobre a rosa"(4).
Palavras do mestre recolhidas pela discípula
Semanalmente o Fundador reunia as Filhas da Caridade em familiares
reuniões nas quais ele lhes fazia perguntas sobre as virtudes cristãs,
os votos e as Santas Regras. Ele comentava as respostas confirmando,
esclarecendo ou corrigindo algum ponto. Sua palavra "cálida, viva,
simples, familiar, convincente, penetrante, instrutiva e prática" se
dirigia "à razão, ao coração e à vontade daquelas 12, 50,80 e até 100
irmãs que acudiam todas as semanas, das paróquias de Paris e subúrbios,
para receber as lições do santo Fundador" (5).
Santa Luísa de Marillac, percebendo o tesouro que aquelas
explicitações encerravam, começou, com a ajuda de outras irmãs, a
anotá-las com a maior fidelidade. Tais notas foram se difundindo entre
as Filhas da Caridade por toda a França, sendo as primeiras coleções
impressas em 1825. Graças, portanto, ao tirocínio de Santa Luísa de
Marillac, possuímos essas regras de sabedoria e bom senso emanadas de um
santo, com toda a vivacidade e até o pitoresco com que as pronunciou São
Vicente de Paulo.
Notas:
1 - San Vicente de Paúl - Biografia y Selección
de Escritos, Pes. José Herrera, C.M. e Veremundo Pardeo, C.M., B.A.C.,
Madrid, 1955, pp. 307 a 310.
2 - Op. cit., pp. 265, 266.
3 - Op.
cit., p. 267.
4 - Op. cit., p. 248
5 - Op. cit., p. 6.
Outras obras consultadas:
- John J. Delaney, Dictionary of
Saints, Doubleday, New York, 1980.
- Pe. José Leite, S. J., Santos
de Cada Dia, Editorial A.O., Braga, 3a. ediçäo corrigida e aumentada,
1993, tomo I.
- Edelvives, El Santo de Cada Dia, Editorial Luis
Vives S.A., Zaragoza, 1947, vol. II, Marzo - Abril.